7/7/2013, Rami G. Khouri, The Daily Star, Líbano – http://goo.gl/nj0mo4
  O intenso debate que se trava hoje nos EUA sobre se o país deve ou não atacar a  Síria como punição ao regime sírio, acusado ainda sem qualquer prova de ter  usado armas químicas, é dos exemplos mais dramáticos que jamais vi de  democracia em ação. É o "consentimento dos governados" em operação. 
  
  É sabido que vasta maioria dos norte-americanos não apoia a ação militar. Só  36% dos pesquisados aprovam que os EUA ataquem a Síria, segundo pesquisa do Washington Post/ABC divulgada na 3ª-feira,  muito menos que os 63% que aprovavam a ação militar em dezembro. E a  oposição é quase a mesma nos dois principais partidos políticos.
  
  O mesmo ceticismo vê-se também no debate na Câmara dos Deputados dos EUA.  Parece ser criticamente importante que qualquer decisão que os EUA tomem em  relação à Síria reflita razoavelmente os sentimentos do povo americano. E como  se pode conhecer melhor esses sentimentos, por meios mais precisos que  pesquisas de opinião ou declarações da imprensa-empresa?
  
  Recentemente, tive o privilégio de poder ver mais de perto os sentimentos de  uma família no Alabama, que merece todo o crédito se consultada sobre que  sentido teriam os ataques norte-americanos contra o mundo árabe.
  
  Há alguns anos, pouco antes da guerra síria, recebi uma carta de Peggy  Stelpflug, mãe do cabo Bill J. Stelpflug, morto em guerra, que se alistou nos Marines em 1982, logo depois de saído do  ginásio em Auburn, Alabama. Em maio de 1983 foi mandado para Beirute com o  contingente encarregado de ocupar o aeroporto de Beirute.
  
  25 anos depois de sua morte, a mãe dele, Peggy, que lecionou inglês na  Universidade de Auburn, reuniu uma seleção das cartas que Bill enviou à família  e mandou para mim.
  
  Li as cartas com profundo respeito por esse jovem que serviu lealmente seu país  (como o pai dele, William, piloto aposentado da Força Aérea dos EUA). Na  sequência, troquei e-mails com Peggy  e nos falamos pelo telefone.
  
  Foi experiência duplamente comovedora. Comoveram-me, primeiro, as cartas de  Bill para a família. Refletiam o anseio típico, tão norte-americano, por coisas  como jogos de futebol e piqueniques na praia com amigos e parentes, ao mesmo tempo  em que ia-se tornando adulto, responsável por armas poderosas, quase sempre contra  inimigos que não via ou que jamais conheceu. As cartas mostram esses  sentimentos, observações, sensibilidade à devastação em Beirute e também  temores e frustrações sobre a própria missão dele ali.
  
  Dia 7/9/1983, escreveu aos pais: "Estou vivo e bem. Meio sujo, cansado e  bombardeado, mas andando e falando. Nossa 'guerra' até aqui só durou três dias.  Dois Marines foram mortos por  foguetes e há mais feridos. A coisa é entre o Exército Libanês que mete as  calças e põe-se a bombardear muçulmanos sem mais nem menos. Começaram a atacar  pelo nosso perímetro, e fomos envolvidos nos combates. Ficamos aqui levando  bala e foguete... Temos revidado, com algum sucesso, mas só pegamos atiradores  isolados, ou destruímos uma ou outra posição dos foguetes, com artilharia.  Estou imundo, cansado demais e 100% inteiro. Preocupo-me mais com vocês  preocupados comigo, do que comigo mesmo... Como vocês disseram, aqui não há paz  nenhuma a ser mantida. Se você não é inventador de guerra, caia fora! Acho que  Beirute é, de fato, uma base de treinamento realista para o U.S. Marine Corps, para se habituarem  com a coisa de verdade. Digam a todos que estou bem e planejo continuar assim.  Nada de me meter a ser herói. Cumpro meu tempo de alistamento nesse quintal de  lixo no Mediterrâneo. Penso em vocês, em casa. Amo vocês muito." 
  
  As cartas chamam a atenção – e, acho, são típicas de muitos soldados  norte-americanos em terras estrangeiras – pela nenhuma informação sobre o local  onde os soldados servem. Ele compensa a nenhuma informação, com humor e  manifestações de orgulho por estar servindo o seu país. Fez muito bem o seu  trabalho (foi várias vezes promovido antes e durante a estada em Beirute).
  
  No dia seguinte àquela carta, dia 8/9/1983 – exatos 30 anos hoje – o torpedeiro  USS Bowen lançou seus torpedos de 5 polegadas contra posições druzas no Líbano.  Foi a primeira vez que se viu fogo naval dos EUA por ali, o que envolveu os EUA  como protagonistas ativos da guerra, aliados do governo local. Logo depois, dia  23/10/1983, um caminhão-bomba explodiu no quartel dos Marines e matou 241 norte-americanos; 58 soldados franceses foram  mortos em outros ataques semelhantes. Bill Stelpflug apareceu listado como "desaparecido  em ação". Dia 29/10/1983, um oficial visitou a família Stelpflug e informou que  seu filho Bill fora morto naquele ataque.
  
  O mesmo episódio emocionou-me outra vez, há 25 anos. Peggy Stelpflug escreveu-me  de repente, sem mais nem menos – soube que eu estava vivo e que escrevia de  Beirute sobre temas políticos, quase sempre criticando a política exterior dos  EUA – e perguntou-me honestamente: "Bill serviu e morreu por alguma boa causa? A  missão dos EUA no Líbano foi algo que o povo libanês tenha aprovado? Os EUA  acertaram ao usar força militar no Líbano em 1982-84?
  
  Um quarto de século depois da morte do filho em Beirute, ela precisava saber  por que seu filho morrera, se a causa daquela missão fora causa justa.
  
  Peggy e eu conversamos algumas vezes sobre o Líbano e os EUA. Acho que ela  aprendeu algumas coisas novas e eu, com certeza, aprendi muito com a reação  digna dela e daquela família. Pedi autorização a ela e ao marido para escrever  aqui sobre as cartas de Bill e sobre a preocupação da família com as amplas  questões políticas que modelam a política externa dos EUA, e eles concordaram  gentilmente.
  
  Peggy e seu marido William partilharam o meu sentimento de que a vida e a morte de Bill podem enriquecer "nosso desejo comum de sabermos mais  uns dos outros, para ampliar nossa partilhada humanidade (...)  e que as lições da vida e da morte de Bill  podem talvez iluminar outros." 
  
  É muito adequado que hoje – 30 anos depois de navios de guerra dos EUA terem  bombardeado as montanhas do Líbano – todos nós estejamos bem certos, antes de  que mais homens e mulheres dos EUA sejam mandados outra vez atacar alvos árabes,  de que cidadãos como a família Stelpflug sejam atentamente consultados e  ouvidos sobre decisão tão importante. 
  
  Os que já se manifestaram contra o envolvimento dos EUA em mais essa guerra  merecem ser ouvidos e merecem resposta clara. O mesmo vale para o povo sírio. O  mesmo vale para todo o mundo. (...) É disso que se trata, me parece, quando se  fala da democracia e do "consentimento dos governados". 
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