Ricardo Gondim: O dia em que roubaram a alma de meu pai

Por Ricardo Gondim

Não envelheço, apenas me vaporizo em nostalgia. Lembranças me tangem feito um cisco no vendaval. Misturo adolescência e velhice no viver. Quanto mais o tempo passa mais eu quero preservar certos momentos. Escrevo ciente de que não devo esquecer experiências que me marcaram. Quero contar, sem saber porque, detalhes que talharam meu jeito de ser. Eu sofreria se notasse que o triturador chamado tempo conseguiu reduzir a pó minhas reminiscências.

Experimentei o gosto da morte algumas vezes. Em todas, passei por um doloroso rito de passagem. Minha primeira morte aconteceu em um corredor da Base Aérea de Fortaleza. Naquele dia perdi um pedaço da minha infância. Papai estava preso. Depois de vários meses incomunicável, soubemos que ele fora trazido do Rio de Janeiro. Seu advogado tinha conseguido permissão para que o visitássemos. Eu e meu irmão acordamos nervosos naquele dia. Íamos ver papai. Tomamos o ônibus. Rumamos para a base. Um sargento abriu uma porta. Papai deu dois passos para fora da cela.

Lá estava ele, em pé no fundo de um corredor. De cabeça raspada, papai mantinha certa altivez. Entretanto, bastou caminhar alguns centímetros e eu notei seus pés se arrastando. Ele parecia se mover em câmara lenta. Jorge e eu disparamos, alucinados. Eu só queria abraçar papai – mal sabia que corria para a minha primeira morte.

Os meses em que foi mantido na Base do Galeão pareciam séculos para mim. Por isso, jamais esquecerei a cena. Papai se ajoelhou no corredor. Eu vinha sofrendo ao lado da mamãe, grávida de gêmeos. Perdemos nosso lar. Ela e nós, seus cinco filhos, fomos obrigados a morar com nossos avós. Invadimos a minúscula casa. Desarrumamos a vida deles. Pré-adolescentes, éramos meninos esfomeados. Também sabia: ser subversivo naqueles dias de ditadura era uma ignomínia. Sempre que o jipe da aeronáutica estacionava, trazendo qualquer comunicado, eu rezava para que meus amigos não notassem. Eu era filho de um proscrito, de um marginal político.

Naquela noite fiquei sem dormir. Nada importava. Eu só esperava a hora de me ver em seus braços. Quando Jorge e eu nos acomodamos em seu peito, notei: papai chorava. Era a primeira vez que testemunhava um pranto seu. Senti as lágrimas banhando meu ombro. Ele estava bem mais magro – e tão diferente, sem cabelo. Afastei-me para ver melhor o seu rosto. Nesse exato momento, experimentei a minha primeira morte ao notar os olhos verdes do meu pai sem brilho. Mesmo emocionado por nos ver, papai me pareceu o homem mais triste do mundo. Meu mundo ruiu. Pensei: Roubaram a alma do papai.

Mamãe nos alcançou. Ele ficou em pé e os dois se beijaram. Conversaram um pouco. Logo o mesmo sargento nos avisou o fim da visita. Observei quando papai voltou para a cela e a porta foi trancada. Eu segurava a mão da mamãe, mas sentia a tristeza dele me possuindo.

Anos depois, meu velho pai agonizou em um hospital de Fortaleza. Alquebrado pelo Alzheimer, sua mente enrugou feito um maracujá. O corpo resistiu por anos. Mas sua alma veio quebrada desde aquelas sessões de tortura. Mesmo depois de inocentado em tribunais civil e militar – por subversão e motim –  ele nunca mais foi o mesmo. O verde de seus olhos ganharam o tom de uma bandeira esgarçada. Ele já não me reconhecia. Quando o respirador artificial não deu conta de mantê-lo vivo, papai partiu. E mais um pedaço de mim foi junto.

Soli Deo Gloria

Comentários