As coisas que aprendi nos discos - Cálice


Nasci em 1979.  Chico Buarque gravou aquele que provavelmente é seu melhor disco em 1978.  Sempre lembrei de sua capa e do cheiro do vinil e do saco plástico que o envolvia.
Minha mãe tinha, já ficou claro, esse disco.  E, segundo me conta, me punha para ouví-lo ainda em sua barriga.  Não duvido que tenha me provocado um impacto uma vez que há uma sequência de fotos minhas, ainda bebezinho, em que apareço inicialmente extremamente agitado até que, ao ouvir Chico, vou me acalmando.  Até que baixo a cabeça e pareço estar pensando no que ouço.
Duas músicas, entre tantas canções importantes, me marcaram politicamente nesse disco.  Não incluirei na lista Tanto mar sobre a Revolução dos Cravos porque só fui entender o significado depois.  As duas canções foram Apesar de você e Cálice.  Hoje vou falar em Cálice.

Cálice tem muita história comovente em torno dela.  Logo que foi composta foi proscrita pela Censura.  Composta em 73, por Chico e Gilberto Gil, deveria ser executada no evento Phono 73, no Anhembi (São Paulo).  Havia uma proibição sobre a letra, por isso os autores tentaram executar sem cantá-la: a Phonogram cortou o microfone de ambos:

Cálice tem uma leitura clara sobre a censura (Cale-se!), mas não era essa a minha primeira leitura.  Minha primeira leitura era a opressão da Ditadura, evidente, mas o seu amargor e sofrimento.  Meu pai fora preso político.  Foi torturado por 33 dias ininterruptos no DOI-CODI em Recife.  A primeira coisa que eu via no texto era o Cálice de Vinho Tinto de Sangue.  Era a dor, o sofrimento.  A tortura de meu pai.  Era a repressão odiosa da ditadura.  Era o fato de que eu sofri uma parte de meu sofrimento porque meu pai, que lutou pela liberdade, sofreu uma parte considerável da dor e sofrimento pela liberdade do país.  Foi torturado.  Teve um amargo cálice a beber.
Levei muito tempo para entender a censura.  O cale-se.  O silêncio forçado.  Só via o grito do torturado rasgando a noite silenciosa.  Meu pai foi torturado.  Essa música sempre me fez ter certeza de que morte nenhuma deve ser comemorada, tortura alguma tolerada.
Aprendi o que essa música falava sobre censura com meu amigo Hadson, na escola, quando fazíamos um trabalho sobre essa canção.
Gil disse em uma entrevista, anos atrás, que perguntou, certa vez, a Chico se o cálice era o silenciamento (fazendo o gesto típico do dedo indicador em contato com os lábios), ao que Chico respondeu que o cálice eram mãos algemadas que também fazem a forma do cálice.  Para mim o resumo disso é que Cálice nos denuncia, a nossas gerações que não viveram diretamente isso, o arbítrio da ditadura e nos convida a sermos intransigentes com as ameaças de que algo parecido se repita em nossa história.  Ensina-me a intolerância contra os que sustentaram esse desumano regime, contra os que torturaram e torturam, contra os que mataram e matam gratuitamente.  Cálice me fala de tortura, de aviltamento, de destruição, de morte e de censura.
Foi a primeira música que me marcou em minha formação política.  Fez de mim um lutador contra o que representou a Ditadura e contra sua presença no cenário político do país.

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