As coisas que aprendi nos discos - Canção da Despedida


Quando eu era tão pequeno que nem me lembro, minha tia Eliana me levou a um show de Geraldo Azevedo. Fiquei tão encantado que passei a usar uma velha torradeira de casa como se fosse um violão. Eu, que nunca aprendi a tocar violão e me tornei um poetinha medíocre, queria ser Geraldo Azevedo.
Minha tia tinha essa relação com Geraldo Azevedo e eu, por isso, tive uma relação muito carinhosa com a música de Geraldo Azevedo. Um dos discos que mais ouvi na infância era de um projeto de 1985, Luz do solo. Entre outras belas canções que carrego no coração e na memória até hoje, estava uma parceria inusitada entre Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré, Canção da despedida.
Já vou embora
Mas sei que vou voltar
Amor não chora
Se eu volto é pra ficar
Amor não chora
Que a hora é de deixar
O amor de agora
Pra sempre ele ficar
Eu quis ficar aqui
Mas não podia
O meu caminho a ti
Não conduzia
Um rei mal coroado
Não queria
O amor em seu reinado
Pois sabia
Não ia ser amado
Amor não chora
Eu volto um dia
O rei velho e cansado
Já morria
Perdido em seu reinado
Sem Maria
Quando me despedia
No meu canto lhe dizia
A canção já havia sido gravada por Elba Ramalho e Geraldo informa isso quando vai cantar no disco. Composta em 1968, ele nunca conseguira, até então, cantá-la em disco porque a censura, obviamente, vetava a música. A gravação do vídeo é com Elba Ramalho.Como disse antes, a realidade da Ditadura Militar que se encerrava se fazia presente em minha vida através da história de vida de meu pai distante. Chorei com a campanha das Diretas Já e com a morte de Tancredo. Tudo aquilo fazia sentido demais para mim.
Aí vem a Canção da despedida, mais uma canção de exílio das muitas que nossos poetas produziram, denúncia por si só de quão longe de liberdade e democracia nós vivemos ao longo de nossa história.

A canção fez muito sentido para mim. Meu pai havia sido exilado no Chile. Além disso, combinava-se intimamente com uma bela estória de Ruth Rocha que eu ouvia na coleçãoTaba: Sapo vira rei vira sapo. As histórias e a música me faziam entender o que significava, em termos de falta de liberdade e arbitrariedade, um regime como o que estava sendo superado nos dias de Sarney.
Mais ou menos pela época desse disco, meu irmão Marcos havia sido preso após uma ação mal-sucedida do PCBR em Salvador. Só que essa história não entra nesse momento em minha formação política porque eu somente vim a conhecê-la alguns anos depois. Apesar de o assalto ao BB de Salvador ter sido noticiado amplamente, minha família me poupou de saber que tinha um irmão presidiário (?).
Aprendi que sempre pode haver um rei arbitrário na esquina que me separe de minha liberdade, que me infrinja a dor, que me impeça de amar, que me torture, me expulse, me force a me separar dos meus, apenas porque não aceite que minhas ideias fluam sem que ninguém, a não ser eu mesmo, as controle. Ideias sem controle, que não podem ser aprisionadas, mas que podem, para o arbitrário, justificar o golpe, a dor, a tortura, o sofrimento. O afastamento de pais e filhos, maridos e mulheres, sonhos e realidades. Um rei que era um sapo mal entronizado que matou e deu sumiço a uma incrível geração de jovens sonhadores.
Para mim, a Canção da despedida era a minha canção do exílio: era a forma em que eu poderia entender porque eu e meu pai estávamos condenados a viver um eterno exílio um do outro. Uma pena que eu e outros somos a prova que o rei, velho e cansado, ainda demoraria muito a morrer, ao contrário do que queriam os Geraldos em 1968.
Abaixo a gravação de Geraldo Azevedo no LP de 1985:

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