As coisas que aprendi nos discos

Lá no outro blog eu comecei a série, ininterrupta, As coisas que aprendi nos discos.  Vou trazer para cá os textos originalmente publicados por lá.
O primeiro post foi sobre A carta, de Djavan e Gabriel O Pensador:



Penso há algum tempo em escrever uma série sobre as canções que contribuíram para a minha formação político-ideológica ao longo do tempo.  Claro que ninguém forma uma consciência política apenas a partir das músicas que escuta.  É preciso ler algo, viver alguma coisa.  Lembro, por exemplo, que o primeiro livro que efetivamente li foiCapitalismo para principiantes, de Carlos Eduardo Novaes e quadrinhos de Vilmar Rodrigues.  Acabo de comprar este livro novamente para a Biblioteca de Alice, uma vez que em algum momento de minha história o volume que li foi perdido.
Mas é certo que contribui decisivamente na minha formação se minha mãe me põe para ouvir Cálice e Apesar de você desde que estou na sua barriga, ou se eu conheço o Brock (rock brasileiro dos anos 80) através do LP Selvagem?, dos Paralamas.  AlagadosSelvagem e Teerã me fizeram refletir muito.
Além dessas canções já citadas, poderia elencar diversas outras, como Desordem,ComidaMiséria e Não vou me adaptar dos Titãs, ou Podres poderesO quereresLíngua de CaetanoPerfeição e  Faroeste caboclo do Legião, Canção da despedida, dos Geraldos Azevedo e Vandré. Pretendo falar sobre todas essas canções – e outras mais – e queria, inicialmente, dar um trato mais cronológico – a partir de quando conheci as músicas -, mas hoje me lembrei de A carta, de Djavan e Gabriel, o Pensador.
Não vá levar tudo tão a sério
Sentindo que dá, deixa correr
Se souber confiar no seu critério
Nada a temer
Não vá levar tudo tão na boa
Brigue para obter o melhor
Se errar por amor Deus abençoa
Seja você
No que sua crença vacilou
A flor da dúvida se abriu
Vou ler a carta que o Biel mandou
Pra você, lá do Brasil:
“Eles me disseram tanta asneira, disseram só besteira
Feito todo mundo diz.
Eles me disseram que a coleira e um prato de ração
Era tudo o que um cão sempre quis
Eles me trouxeram a ratoeira com um queijo de primeira
Que me, que me pegou pelo nariz
Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas
E disseram para eu ser feliz
Mas como eu posso ser feliz num poleiro?
Como eu posso ser feliz sem pular ?
Mas como eu posso ser feliz num viveiro,
Se ninguém pode ser feliz sem voar?
Ah, segurei o meu pranto para transformar em canto
E para meu espanto minha voz desfez os nós
Que me apertavam tanto
E já sem a corda no pescoço, sem as grades na janela 
E sem o peso das algemas na mão
Eu encontrei a chave dessa cela
Devorei o meu problema e engoli a solução
Ah, se todo o mundo pudesse saber
Como é fácil viver fora dessa prisão 
E descobrisse que a tristeza tem fim 
E a felicidade pode ser simples como um aperto de mão
[Entendeu?]
É esse o vírus que eu sugiro que você contraia
Na procura pela cura da loucura, 
Quem tiver cabeça dura vai morrer na praia.”


Conheci essa música em 2002.  Estava no seminário e havia acabado de encontrar, estudando o Cântico de Maria (Lucas 1. 46-56), o teólogo presbiteriano norte-americano Richard Shaull, introdutor da obra de Karl Barth no Brasil, conceituador da Teologia da Revolução – precursora da Teologia da Libertação.

Estava encantado, como sou até hoje, com o texto do Magnificat e com a Teologia da Revolução.  Engraçado que o meu caminho para encontrar a Revolução foi a Bíblia, mesmo que meus irmãos críticos conservadores não conseguissem perceber isso, essa sutileza.  O trecho que me impactou e me ensinou que eu poderia ser o que eu era e sou e ser servo de Cristo são os versículos centrais:
51 Com o seu braço manifestou poder; dissipou os que eram soberbos nos pensamentos de seus corações;
52 depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes.
53 Aos famintos encheu de bens, e vazios despediu os ricos.
Olhei o texto e de imediato entendi: a proposta de um Deus Todo-Poderoso e Revolucionário é a Revolução.  Esvaziar o poder dos poderosos, depor a riqueza dos exploradores, colocar em seu lugar os explorados, encher que bens quem nada nunca pode ter.  Fui pesquisar que teologia podia me ajudar a entender esse Deus que faz a Revolução e encontrei Shaull, minha referência até hoje.  Shaull faleceu em outubro de 2002.  Um ano antes escreveu um texto profético acerca dos ataques de 11 de setembro, lembrando que a causa de tudo era a política externa de seu país.
Foi nesse contexto que conheci A carta. É uma música de amor?  É um música política?  Existencialista?  Não me importa.  O que essa música me ensinou independe disso.
Minha reflexão foi sobre a opressão ideológica sobre os sujeitos.  É o trecho de Gabriel da música.  Para ser feliz é preciso estar nessa prisão que o sistema nos lança.  Parte considerável da exploração e da dominação se dá no campo do controle, do aprisionamento das ideias.  Para ser bem aceito, bem recebido, é preciso aceitar a coleira, o prato de ração, o queijo na ratoeira.
Eles me disseram que a coleira e um prato de ração
Era tudo o que um cão sempre quis
Eles me trouxeram a ratoeira com um queijo de primeira
Que me, que me pegou pelo nariz
Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas
E disseram para eu ser feliz
A libertação do explorado parte de uma tomada de consciência.  A Revolução que liberta não liberta apenas de um ponto de vista político (em 2002, isso era representado pela eleição de Lula), mas liberta as ideias.  Por isso, precisamos descobrir que só é possível ser feliz sendo livre, liberto, integral, consciente de si, insubmisso às tentativas que o discurso e a ideologia do mundo tentam nos impor.
Mas como eu posso ser feliz num poleiro?
Como eu posso ser feliz sem pular ?
Mas como eu posso ser feliz num viveiro,
Se ninguém pode ser feliz sem voar?
Por isso, A carta foi importante em minha formação política.

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