Eu, filho de preso político

Por Ricardo Gondim
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Eu era menino quando prenderam meu pai; era adolescente quando dois tribunais, um militar outro civil, o inocentaram por motim e subversão; era adulto quando uma lei esdrúxula o anistiou.  Meu pai morreu. Eu já passei da meia idade, mas o processo que ele moveu contra a União por todos os horrores sofridos, ainda não o indenizaram. Golpes podem acontecer da noite para o dia, mas eles deixam um rastro sinistro por décadas.

Concordo, o Brasil é um pais esquisito e, inúmeras vezes, cruel. Corro pelas ruas de São Paulo e vejo o desmando municipal nas calçadas quebradas, imundas e perigosas. O transporte público é uma vergonha. Ônibus velhos, também imundos, rodam inseguros em ruas rebentadas. Os metrôs, insuficientes, vivem superlotados. Os pequenos hospitais nas periferias são mal equipados. Falta gaze, linha para sutura, anestesia. Os equipamentos para radiografia, obsoletos e danificados, não funcionam. As unidades de tratamento intensivo, infestadas até de rato e barata, não oferecem socorro imediato ao pobre. O que falar dos portos, das rodoviárias, das penitenciárias, das estradas? A internet brasileira é lenta. Os celulares não completam as ligações mesmo com as tarifas mais caras do planeta.

Nesse mini caos nacional, alguns pedem um governo de exceção. Ouço grupos reivindicando uma intervenção militar. Lamento informar: uma ditadura não resolveria nada.

Eu sofri na pele os desdobramentos da ditadura. Me considero autorizado a relatar pelo menos três razões porque devemos exorcizar qualquer menção de retorno dos militares à política.

1. O medo.

Uma ditadura só se mantém montada no medo. Quando baixaram o AI-5, eu me lembro da varredura que fizemos por toda a casa em busca de livros que incriminassem nossa família. Livros de sociologia, filosofia e dramaturgia foram ensacados e desaparecidos. Em 1968, papai já estava solto, mas no dia em que baixaram o Ato – que dava ao ditador poderes totalitários – precisamos levá-lo escondido no porta mala de um carro até um sítio ermo. Na ditadura, advogados não conseguiam se comunicar com seus clientes. Não havia habeas corpus. Monstros – Sérgio Paranhos Fleury – torturavam.  Enquanto o Brasil celebrava o tri campeonato mundial de futebol cresceram os esquadrões da morte – o poder policial paralelo que exterminou milhares de bandidos enquanto jogava mais adubo na violência pública. Na faculdade, um professor ultra-católico, da TFP, dava aula de Problemas Brasileiros. (Não estou certo, talvez o nome da disciplina fosse Organização Social e Política Brasileira, OSPB). Em uma prova de fim de curso, escrevi duas palavras proscritas: camponês e latifundiário. O professor me convidoua reescrever a prova sem as duas palavras. Caso contrário, ele teria que me reportar. Em suas palavras: -Com seu histórico familiar, Ricardo, sua vida estará comprometida para sempre.Esse clima de paranoia rondava as conversas, as amizades, os encontros. Nunca se sabia quem era informante do regime.

2. Incompetência 

Os militares podem ser hábeis em estratégia de guerra, mas se provaram incompetentes na gestão política. Eles apadrinharam políticos como Antônio Carlos Magalhães, Paulo Maluf e Magalhães Pinto, entre outros. A economia estatizada teve luminares – Delfim Neto, Roberto Campos – que não só promoveram uma enorme concentração de renda (os ricos ficaram mais ricos e os pobres, mais pobres) como endividaram o país. O Fundo Monetário Internacional dava pitacos nos rumos da economia e o tão propalado Brasil soberano viveu sob tutela dos grandes agentes financeiros internacionais. Ao largarem o poder, os militares deixaram uma bagunça econômica que levou à hiperinflação.

3. As grandes obras

Típico dos estados fascistas, a ditadura promoveu obras faraônicas: Itaipu, rodovia transamazônica e outras grandes empreitadas. Mas sucateou o ensino elementar. Acabou com o médio. Na ditadura, a reforma no ensino universitário teve como motivação esvaziar focos subversivos, não melhorá-lo. Não resolveu o déficit de moradia. As grandes obras fizeram nascer um poder dentro do poder: as empreiteiras. O Brasil portentoso no macro era uma farsa do Brasil pobre no micro.

No dia 1 de abril, aniversário do golpe que prendeu meu pai, destruiu minha família e atrasou meu país, não vou celebrar nada.

Estarei de luto, dizendo: abaixo qualquer saudade da ditadura.

Soli Deo Gloria

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